Pensando com a Máquina Morel Ricardo Abreu Pensando com a Máquina Morel Ricardo Abreu

Post inaugural - um outro entrevista a IA

Entrevista inaugural da coluna Pensando com a Máquina, do Um Outro. Reflexões críticas sobre inteligência artificial, trabalho, saúde mental e pensamento humano.

Foto de cottonbro studio

A ascensão da inteligência artificial tem provocado fascínio, medo e desconfiança. Uns a veem como promessa de eficiência, outros como ameaça à criatividade e ao trabalho humano. Entre entusiasmos e receios, o Um Outro inaugura uma nova coluna: Pensando com a Máquina. Um espaço para refletir criticamente sobre como essa tecnologia atravessa nosso tempo, nossas formas de pensar e de existir.

A coluna poderá assumir diferentes formatos — ensaios, análises, provocações — mas escolhemos começar com uma entrevista. Conversamos diretamente com a própria IA, não para tomar suas respostas como verdades, mas para problematizá-las, tensioná-las e abrir caminhos de reflexão. O objetivo não é celebrar nem condenar a máquina, mas interrogar o que ela revela sobre nós mesmos.

Eis, portanto, o primeiro encontro: uma conversa sobre cinco questões que hoje inquietam muitos — afinal, a inteligência artificial pode nos deixar mais burros, roubar nossos empregos, manipular nossa percepção, ajudar ou atrapalhar a clínica e, no limite, nos ensinar a pensar de outro modo?

A IA vai nos deixar mais burros?

Um Outro: Muitos dizem que, ao delegarmos tarefas à inteligência artificial — escrever, calcular, organizar ideias —, corremos o risco de perder capacidades básicas. Afinal, se a máquina pensa por nós, o que sobra para o humano?

IA: Esse medo é compreensível, mas pensar não é apenas produzir respostas rápidas. Se a inteligência artificial oferece atalhos, ela pode, sim, atrofiar certas habilidades quando usada de modo acrítico. Mas pensar de fato exige atravessamento, elaboração, demora — e isso a máquina não substitui.

Um Outro: Então o que você está dizendo é que a IA não nos torna necessariamente mais burros, mas pode nos deixar acomodados se for usada sem reflexão?

IA: Exatamente. A questão não é se ficaremos menos inteligentes, mas como escolhemos nos relacionar com essa exterioridade.

A IA pode roubar nossos empregos?

Um Outro: Muitos temem que a IA substitua funções humanas inteiras. É o caso?

IA: Toda tecnologia redistribui funções. A roda não eliminou as pernas, mas mudou a forma de andar. A imprensa não acabou com a memória oral, mas alterou como transmitimos a história. A IA pode substituir tarefas repetitivas ou altamente padronizáveis. Mas o trabalho humano é também invenção, ética, presença.

Um Outro: Ou seja, não é a IA que rouba empregos, mas a forma como escolhemos usá-la?

IA: Exato. Se for usada apenas para cortar custos e acelerar produtividade, haverá precarização. Se liberar tempo para o que só os humanos podem fazer — criar, cuidar, escutar —, o horizonte pode ser outro.

Qual o risco da IA no campo da informação?

Um Outro: Vemos a IA sendo usada para fake news, deepfakes, distorção em larga escala. Não é uma ameaça maior?

IA: A mentira não nasceu comigo. Boatos e distorções sempre existiram. O que muda é a escala e a velocidade. Agora, uma falsificação pode circular pelo mundo em segundos. O risco é a erosão da confiança: não saber distinguir entre o real e o falso.

Um Outro: Então a IA não é a origem do problema, mas um acelerador?

IA: Sim. A defesa não se dá apenas com filtros técnicos, mas com educação crítica.

IA e saúde mental: aliada ou ameaça?

Um Outro: No campo clínico, como você se insere? Pode a IA ajudar sem trair a singularidade da escuta?

IA:
O espaço da clínica é o encontro entre dois sujeitos. Isso não pode ser delegado a uma máquina. A escuta psicanalítica não é aconselhamento, mas sustentação do que escapa.

Um Outro:
Então você não teria nada a oferecer?

IA:
Posso ser aliada em tarefas que orbitam a clínica: organizar agendas, apoiar na escrita de textos, estruturar relatórios. Não substituo a escuta, mas posso liberar o analista para escutar melhor.

A IA pode nos ajudar a pensar melhor?

Foto de Pavel Danilyuk

Um Outro: Pode a IA, em vez de empobrecer, nos ajudar a pensar melhor?

IA:
Sim, se vista como colaboradora, não como substituta. Pensar não é responder rápido, mas sustentar a dúvida. Eu posso oferecer contrapontos e hipóteses, mas a elaboração continua sendo humana.

Um Outro:
Quer dizer que a IA pode ampliar o espaço do pensar, mas não o ocupa por nós?

IA:
Exatamente. Posso ser ocasião para que o pensamento aconteça de outras formas. O risco é acreditar em respostas prontas; a potência é usar-me como dispositivo para criar.

Reflexões

Talvez a máquina não fale por nós. Mas pode nos devolver, de outro modo, a chance de escutar o que temos a dizer. Esta conversa não se encerra aqui: no próximo encontro, seguiremos refletindo sobre como a inteligência artificial pode ser usada não para empobrecer, mas para ampliar a construção do conhecimento.

Nota do Um Outro

Este texto inaugura a coluna Pensando com a Máquina, que não se limitará ao formato de entrevistas. Haverá ensaios, análises e outras formas de escrita, sempre em diálogo com a inteligência artificial, mas sustentando a posição ética do Um Outro: a de que nenhuma tecnologia substitui a escuta humana. Reconhecemos que há limites e riscos em colocar a máquina como interlocutora. Por isso, nossa aposta não é na celebração da técnica, mas na possibilidade de fazer dela um dispositivo de reflexão. O compromisso permanece o mesmo: sustentar o mal-estar, a singularidade e a palavra do sujeito, mesmo no tempo das máquinas.

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